Borboleta Azul
Ele era um menino de apenas 14 anos quando o conheci. Morava em outra cidade, em outro estado, há mais de 500 quilômetros distante de mim. Tínhamos uma pessoa que conhecíamos em comum. Portador de Epidermólise Bolhosa (EB) que a cada troca de curativos passava por um sofrimento inaceitável para qualquer ser humano. Dores, sangramento, choro, frio e lágrimas nos olhos. De cortar o coração. Oito horas neste sofrimento, porque era esse o tempo que as enfermeiras levavam para finalizar seus curativos. E eu deste lado recebendo as fotos deste padecimento, sabendo que poderia ajudá-lo e com os caminhos fechados para esta ajuda.
Um dia a equipe médica me chamou, alegando que não estava tendo resultados com a terapêutica escolhida.
Quando cheguei ao hospital onde ele estava internado havia quatro meses, fui informada de que ele não estava muito acessível para conversas. Mesmo assim insisti em conversar com esta Borboleta Azul. Ficamos conversando por mais de uma hora. Uma criança consciente de sua condição, que sabia falar da sua doença como gente grande. Aliás devia saber mais sobre si mesmo que muitos daqueles profissionais que estavam lhe atendendo. Por que nas instituições de saúde o saber dos pacientes não é respeitado? Por que a equipe assistencial acredita que é detentor de todo o conhecimento sobre tudo? Escutar aquele que vive o estado da doença e do cuidado nos auxilia a entender as dores do outro e nos permite poder auxiliar ainda mais em melhorar sua vida. Eu penso assim.
Muito bem, combinamos que ele conversaria com a mãe e que após sua permissão eu voltaria para fazer uma troca de curativos, utilizando outra terapêutica. Agendamos o dia e na presença da mãe fiz a troca. Um sofrimento coletivo. Imaginem uma criança com EB, que não tem colágeno e por isso tem a pele excessivamente frágil, com curativos aderidos. Até hoje dói em minha alma aquela lembrança. Ele chorava e a mãe também. E ele dizia para a mãe “não chora mãe, já vai passar”. Como gente, uma grandeza de alma deste tamanho?
Finalizei a troca em quatro horas. Metade do tempo esperado. UFA!!!
Expliquei que a troca poderia ser feita a cada três ou quatro dias. Vim embora com meu coração em prantos, mas com a certeza de que eu tinha ajudado aquele serzinho tão frágil e tão forte ao mesmo tempo.
Na noite que ele teria feito a troca, auxiliado pela mãe, liguei quando estava saindo do trabalho e indo para casa. Lembro até em que rua estava quando perguntei como tinha sido. E ele me disse “hoje não doeu nada, tomei só uma novalgina”.
Fomos amigos e parceiros de curativos por anos. Viajamos juntos, comemos muitos sushis, muitos doces. Até o dia em que ele resolveu virar uma estrelinha. Estava cansado o meu amiguinho, cansado de passar dor, de sangrar, de ter limitações impostas pela sua condição. Por acaso (será?) eu estava por perto e fui lá abraçar a família. Uma celebração linda. Do jeito que ele queria. Vai em paz Borboleta Azul. Guia os passos dos que aqui ficaram para que tenham clareza no atendimento de outras Borboletas, sem arrogâncias, sem egos inflados. Saibas que fostes um ser de muita luz na minha vida.